Cidade mercadoria
6 de novembro de 2015 |
*Roberto Ghione
A terra urbanizada constitui um valioso patrimônio material, cobiçado pelo capital para a realização de empreendimentos imobiliários e, com eles, a multiplicação dos lucros. Quanto mais qualificada urbanisticamente, mais valorizada e maiores as vantagens financeiras. Esse princípio elementar do urbanismo em sociedades capitalistas é o que define a cidade como mercadoria e a terra como o recurso básico para o desenvolvimento urbano. Terra urbanizada representa, na sociedade contemporânea, um dos bens de câmbio mais valorizados e, portanto, sujeito a disputas, não apenas econômicas, mas ideológicas em relação ao tipo de cidade que se constrói e aos interesses que se beneficiam das articulações políticas relacionadas com sua gestão.
O poder público define (ou deveria definir), através de planos diretores de desenvolvimento, a concepção ideológica que determina a forma da cidade e os interesses que serão beneficiados. Uma gestão com espírito estadista e democrático deveria beneficiar sempre o interesse geral e orientar a inciativa privada na construção de uma cidade justa, inclusiva e solidaria. Não é isso o que acontece nas cidades do Brasil em geral, e Recife em particular, se consideramos a ausência de planejamento de médio e longo prazo, as arquiteturas e paisagens urbanas de exclusão construídas nas últimas décadas (que as tem deformado e levado ao colapso) e a prosperidade econômica de setores minoritários diretamente proporcional à decadência social e urbana da grande maioria.
Resulta ainda contraditório, no caso do Recife, a cidade ter sido governada por quatro gestões consecutivas de governos ditos populares (três do Partido dos Trabalhadores e uma do Partido Socialista Brasileiro) ao mesmo tempo que experimentou avanço significativo dos interesses do capital privado em detrimento do espaço público qualificado e da integração social. O discurso pode ser uma coisa, mas, na hora de decidir, o poder do dinheiro compra toda e qualquer ideologia e perdura o status quo do poder estabelecido, apesar da oposição ferrenha de grupos esclarecidos que clamam pelo direito à cidade.
Neste contexto, as gestões se apresentam incapacitadas e subordinadas ao poder econômico, que age dentro de leis de uso e ocupação do solo concebidas em função da lógica extrativa da terra e da solução de edifícios-objeto isolados dentro das condicionantes do lote, sem a mínima consideração à construção de espaços urbanos qualificados nem ao favorecimento da integração e inclusão social. O conceito tão difundido (e prometido em campanhas eleitorais) de construir “cidades para as pessoas” é substituído pela construção de “cidades para o capital”, modelo que perdura apesar de dar sinais de esgotamento na imobilidade, na exclusão social, na paisagem urbana caótica e na violência, que afetam praticamente a todas as cidades brasileiras.
O aspecto mais evidente da lógica que decide a configuração da cidade mercadoria atual é o conjunto de leis baseadas em indicadores que definem o potencial construtivo dos terrenos. Assim, a volumetria da arquitetura e a paisagem urbana resultante dependem de uma variável impossível de prever, e a cidade, em sua concreta materialidade, é definida pela abstração de indicadores baseados nessa variável imprevisível, que atende apenas às expectativas de proprietários de terrenos e empreiteiros, ao mesmo tempo que ignora a função social da propriedade e a construção de espaços públicos integradores.
Neste ponto, a necessidade de um projeto de cidade resulta imprescindível para definir os interesses que serão beneficiados, a estrutura de mobilidade, a configuração e apropriação dos espaços públicos, os sistemas de serviços e infraestruturas e a forma urbana, aspectos que deverão orientar a inciativa privada na construção de uma cidade qualificada, efetivamente para as pessoas e certamente mais lucrativa, baseada em uma concepção integrada e não na soma de retalhos que configura a realidade atual.
A cidade mercadoria que se constrói atualmente atende aos interesses míopes do individualismo segregacionista, à ignorância ou ao conluio de interesses dos gestores urbanos e às expectativas de uma classe média obcecada por privacidade, exclusão e consumo. Ninguém parece entender que uma estrutura urbana qualificada, com boa arquitetura, fachadas ativas, usos mistos e pessoas usufruindo da vivência urbana nas ruas valoriza significativamente os empreendimentos e concilia o conceito de cidade mercadoria com o de cidade para as pessoas. Ou que os indicadores de edificação devem obedecer a projetos de cidade baseados na configuração de espaços urbanos e não em abstrações extrativas e mercantilistas. Ou que os projetos de arquitetura devem privilegiar os aspetos urbanísticos e não a individualidade do objeto.
Os exemplos de operações urbanas de sucesso em diferentes partes do mundo civilizado parecem não ter vez na realidade de muitas cidades brasileiras, apesar de elogiados e admirados por grande parte da elite local que viaja e usufrui de tais lugares, mas se opõem ferrenhamente à construção de conceitos similares no Brasil. De igual forma, conceitos urbanísticos de eficiência comprovada durante mais de meio século parecem não ter sido assumidos entre os urbanistas locais, obcecados pela arquitetura do edifício-objeto, sem compromisso com a configuração de espaços urbanos.
Nas cidades mercadoria brasileiras, as denominadas “áreas nobres” parecem não ter mais esperanças de qualificação, configuradas por muros de garagens, cercas e guaritas de segurança. As alternativas de construção de cidades humanizadas e solidárias restam nas periferias. Será que tal oportunidade vai ser aproveitada com inteligência e sensibilidade? Ou o modelo individualista e excludente vai ser espalhado por todo o território urbano, decretando a morte definitiva da cidade?
*Roberto Ghione é arquiteto e urbanista.
Muito interessante.