Artigo: Direito à Cidade – breve histórico e atuais ameaças
30 de junho de 2021 |
Leia na íntegra o artigo do conselheiro federal do CAU/BR pelo Paraná, Jeferson Navolar, sobre o direito à cidade e os riscos da Resolução CGSIM 64.
A Resolução foi editada sem qualquer debate público, salvo o “suporte técnico” da entidade representativa das grandes construtoras.
Jeferson Navolar*
Segundo a Arquiteta e Professora Ermínia Maricato (1994), “Talvez possamos atribuir à elaboração e coleta de assinaturas para a emenda constitucional da Reforma Urbana, de iniciativa popular, o momento de sua maior divulgação e repercussão. O Regimento Interno da Constituição previa a possibilidade da apresentação de emenda popular subscrita, por, pelo menos, 30.000 eleitores. Ao todo seis entidades nacionais e dezenas de entidades regionais e locais assinaram a apresentação da emenda que foi entregue no Congresso Nacional com 160.000 assinaturas de eleitores. São as seguintes as entidades nacionais que uniram esforços em torno da proposta: Federação Nacional dos Engenheiros – FNE; Federação Nacional dos Arquitetos – FNA; Articulação Nacional do Solo Urbano; Coordenação Nacional dos Mutuários; Movimento da Defesa do Favelado – MDF; e Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB”.
Dentre algumas interpretações existentes acerca do próprio capítulo de Política Urbana (artigo 182), é possível afirmar que a principal delas é a definição do Município como espaço político-institucional, ou seja, compete ao próprio estabelecer políticas urbanas adequadas, com a finalidade de alcançar as diretrizes estabelecidas.
Constituição da República Federativa do Brasil, 1988:
Capítulo II Da Política Urbana
Título VII Da Ordem Econômica e Financeira
Capítulo II Da Política Urbana
Art. 182: A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Ainda segundo MARICATO: “Os sucessivos governos nunca tiveram um projeto estratégico para as cidades brasileiras envolvendo, de forma articulada, as intervenções no campo da regulação do solo urbano, da habitação, do saneamento ambiental, e da mobilidade e do transporte público. Sempre de forma fragmentada e subordinada à lógica de favorecimento que caracterizava a relação intergovernamental, as políticas urbanas foram de responsabilidade de diferentes órgãos federais.”
Somente a partir de 2001 com a publicação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) começa a regulamentação de fato daquele artigo 182 da CF.
Art. 1º Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.
Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
A próxima iniciativa relevante, que merece destaque, é a criação do Ministério das Cidades em 1º de janeiro de 2003 com os “objetivos de combater as desigualdades sociais, transformar as cidades em espaços mais humanizados e ampliar o acesso da população a moradia, saneamento e transporte”.
De acordo com Aldomar A. Rückert, professor do Departamento de Geografia da UFRS, foi somente a partir de 2003 que se inicia a tentativa, logo frustrada, de construção de uma Política Nacional de Ordenamento Territorial – PNOT, quinze anos após a promulgação da Constituição de 1988. Este fato demonstra nosso descompasso com as experiências internacionais do gênero. Entende-se que a política territorial se configura pelo conjunto de enfoques estratégicos, a médio e longo prazo, direcionados a intervir sobre o território, a fim de que assuma as formas que sejam adequadas ao total dos interesses que controlam o poder político (Sanchez, 1992, p. 72). Entende-se também que as políticas territoriais extrapolam a noção dos planos regionais de desenvolvimento.
A posse e o controle do território têm, classicamente, sustentado a construção do Estado no Brasil, o qual antecede, historicamente, a própria nação. A relação clássica entre Estado e território aponta para a implantação das formas estruturantes deste último pelo papel dirigente do poder unidimensional do Estado. No pós-30, o Estado Desenvolvimentista consolida as principais infraestruturas estratégicas nacionais e, com isso, assume o papel de principal artífice da construção da nação. De corte explicitamente geopolítico no pós-64, o Estado autoritário brasileiro enfrenta, a partir dos anos 80, o esvaziamento de suas propostas e viabilidades com a crise do Estado Desenvolvimentista.
O Brasil, um dos maiores exemplos do projeto desenvolvimentista, chega aos anos 90 sem haver mudado tal projeto, o qual vinha mantendo o país ainda dentro dos moldes do processo substitutivo de importações. O processo de globalização já em curso nos anos 80, as transformações do sistema capitalista como um todo, a falência do planejamento centralizado e o fim dos padrões tecnológicos dominantes desde o pós-guerra, associados ao ideário político-econômico neoliberal, passam a fornecer as grandes linhas em que passam a se inspirar as ações que visam às reestruturações econômicas e territoriais.
É nessa toada que chegamos abruptamente aos tempos atuais, com um governo decadentemente neoliberal, que deseja o desmonte total do Estado brasileiro, inclusive nas políticas urbanísticas.
Nos referimos aqui à publicação da Resolução CGSIM nº 64 do Ministério da Economia, que trata da “classificação de risco no direito urbanístico”. A Resolução CGSIM nº 64, de 11 de dezembro de 2020, concebida pelo Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, com base na Lei de Liberdade Econômica, foi editada sem qualquer debate público, salvo o “suporte técnico” da entidade representativa das grandes construtoras.
A Resolução CGSIM nº 64, de possível inconstitucionalidade, invade matéria relacionada ao ordenamento territorial e controle do uso e ocupação do solo de competência dos Municípios, como preconiza a Constituição Federal. Ademais, a invasão se consuma por meio de instrumento jurídico inferior (Resolução x Lei Federal), em flagrante desrespeito de normas do direito.
O Ministério da Economia igualmente exorbita ao formular o conceito de “risco no direito urbanístico”, a partir do qual as obras particulares passam a ser classificadas em níveis de risco. O temor fica por conta do afrouxamento do licenciamento de obras classificadas como de “baixo risco”.
As obras do tipo A são aquelas de risco considerados “leves, irrelevantes ou inexistentes” (a Resolução não especifica como o Ministério chegou objetivamente a tal avaliação). Elas passam a ser dispensadas do ato público de licenciamento, ou seja, não será necessário sequer qualquer registro ou qualquer ato oficial. Bastará o responsável preencher uma “autodeclararão” em sistema online integrador nacional.
Na categoria tipo B, estariam as obras “com risco previsível e conhecido, mas ainda assim baixo” (de novo a resolução não explica como o Ministério chegou objetivamente a tal conclusão). Alvará de construção e “Habite-se” seriam liberados automaticamente, também de forma online, mas nesse caso com apresentação de certos documentos (entre os quais o Registro de Responsabilidade Técnica – RRT) e o pagamento de uma taxa do meio digital. Na categoria tipo A não haveria pagamento de taxa.
Com 44 artigos, oito anexos com diversas tabelas, formulários e check-lists, além de conceitos de difícil compreensão como “estruturas” Alpha, Beta, Gama e Delta, a Resolução CGSIM nº 64 está longe de ser um instrumento facilitador para o cidadão. A comprovação está na própria resolução, que cria a figura do “procurador digital de integração”, uma nova espécie de despachante, para prestar serviços aos particulares interessados na dispensa do Alvará de Construção e do Habite-se. O que torna falacioso o argumento de que não haverá custo.
Esta Resolução CGSIM nº 64, proposta do Ministério da Economia para simplificação do licenciamento urbanístico integrado, foi um dos temas da Plenária do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) de 30 de abril. Em virtude disso, o CAU/BR entendeu que o único caminho possível para sua atuação em relação a esta matéria, seria apresentar soluções para mitigar as distorções da proposta original, aproveitando a oportunidade que surge de discutir, em nível nacional, novas ferramentas e possibilidades de melhoria do planejamento urbano, tais como: agilidade, segurança, transparência e responsabilidades compartilhadas nos processos licitatórios; instituição de carreira de Estado para nossos arquitetos analistas; e fomento a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social, com criação de departamentos de projetos nos órgãos governamentais para atender os cidadãos menos favorecidos, nos moldes de um médico do SUS, ou um defensor público, popularizando nossa profissão”.
Em síntese, a posição do CAU Brasil é a seguinte:
1 – Licenciamento simplificado: O CAU propõe um Licenciamento Declaratório, por análise prévia, rápida e simplificada, focada nos parâmetros urbanísticos, com apresentação da implantação de projeto de massa, volumetria da edificação de modo a caracterizar a relação do edifício ao terreno, seu entorno e à cidade. Valorização de processos tecnológicos, proposição de sites com toda a informação necessária ao trâmite de processos de forma clara, simples, atualizada, gratuita e acessível a todos.
2 – Construções de Baixo Risco: Nossa proposição prevê enquadramentos de edificações em função de sua tipologia e riscos de uso com apresentação de tabela desenvolvida pelo comitê para resolução do tema.
3 – Integração de todos os Entes Públicos no Ato Declaratório: A liberação das licenças de obra e habite-se devem ocorrer como serviço único, integrado, nas diversas instâncias do poder público, município, CBM, Anvisa e agências ambientais, entre outros.
4 – Responsabilização Compartilhada: O RRT e a ART são suficientes para confirmar as responsabilidades dos profissionais e certificar sua habilitação; os órgãos municipais e estaduais são responsáveis pela concessão de alvarás, habite-se e outros instrumentos; o proprietário é responsável pelas informações que presta. Não concordamos de forma alguma com a proposta oferecida que responsabiliza apenas os requerentes, profissionais e proprietários. O texto da Resolução prevê uma primeira certificação, simplificada e auto-declaratória de boa-fé, sem apresentação de projetos e sem análise; ao final da obra, uma certificação com exigências legais e completas responsabilizando os profissionais com toda a força da lei. Temos então atos declaratórios dissociados, em momentos distintos acarretando extrema insegurança jurídica, podendo tornar-se fator impeditivo ao exercício profissional.
5 – Poder de Polícia: Para não constituir um risco, o licenciamento declaratório, se ofertado, deve ser seguro e completo, não podendo ser precário como está sendo proposto e deve oferecer um mínimo de segurança jurídica aos profissionais, usuários, requerentes, entes públicos e principalmente à cidade.
6 – Quanto à Rede MURIN (Mercado de Procuradores Digitais de Integração Urbanístico de Integração Nacional): a princípio o CAU Brasil não concorda com a proposta de privatização dessa função, serviço esse que já existe na figura dos municípios, deve-se, porém, fomentar o desenvolvimento de ferramentas de TI e de gestão de análises e acompanhamentos de projetos e obras. Acreditamos que o ME pode investir no enfrentamento da melhoria dos serviços oferecidos pelos municípios, implementando política de desenvolvimento de ferramentas de gestão das cidades, criando programas de capacitação dos nossos técnicos, com novos padrões de governança.
É preciso reafirmar que o licenciamento urbanístico deve estar a serviço do planejamento urbano aos interesses coletivos (artigo 182 da CF) e que é urgente para garantir o “Direito à Cidade”, reforçar as estruturas municipais de licenciamento, com equipamentos, profissionais qualificados e participação popular.
*Organizado pelo Arq. e Urb. Jeferson Dantas Navolar, Conselheiro Federal do CAU/PR
Feliz em saber que nossa classe está se manifestando contra esta Resolução absurda.