Ocupar, habitar, resistir
29 de abril de 2015 |
*Roberto Ghione
Nos processos de ocupação do território e de construção das cidades no Brasil persistem vícios ancestrais, derivados dos conflitos sociais, da precariedade de planejamento e projeto e da visão extrativa, que entende a estrutura urbana como mercadoria para ser negociada em benefício exclusivo do interesse privado.
Nesse contexto, podem ser detectadas as motivações de diferentes atores: quem lucra no processo baseia-se na lógica de transformar, consumir e especular, atendendo às solicitações do mercado que considera os produtos imobiliários como objetos de consumo e os cidadãos consumidores. Este conceito, que materializa a chamada “cidade formal”, conta com a anuência de gestões urbanas que possuem, como instrumentos de controle, leis de uso e ocupação do solo que afirmam esta ideologia extrativa.
Outros atores, marginalizados desse processo, configuram a chamada “cidade informal” em terrenos aparentemente desvalorizados, públicos ou carentes de condições de urbanização. A lógica dessa situação consiste em ocupar para habitar e resistir para permanecer, quando comunidades se consolidam em terrenos que viram apetecíveis para o interesse imobiliário.
Ocupar, habitar, resistir é a estratégia que configura parte significativa da estrutura urbana das grandes cidades brasileiras. A criação das ZEIS (Zonas especiais de interesse social) pretende formalizar, proteger e revigorar as estruturas nascidas na informalidade e, por isso, carentes de condições adequadas de habitabilidade. Isso não impede a pressão do mercado em áreas inseridas nos eixos de desenvolvimento imobiliário, promovendo processos de gentrificação, assim como a natural resistência das comunidades ligadas por laços de convivência, vizinhança, afeto e trabalho. Comunidades como Brasília Teimosa e Coque, no Recife, são exemplos de resistência ativa perante a pressão pela transformação de áreas urbanas estratégicas.
Os conceitos de “cidade para viver” e “cidade para lucrar” assumem a tensão extrema nos conflitos entre comunidades resistentes e pressão imobiliária. O processo de privatização do solo urbano das cidades brasileiras tem desqualificado extremamente o espaço público, levado à condição de “espaço residual”, aquele que sobra entre um empreendimento privado e outro, utilizado como local de passagem (de carro) e não como lugar de convivência que estimula a cidadania. A função social da propriedade, prevista na Constituição de 1988 e ratificada pelo Estatuto das Cidades, fica, até hoje, na letra morta de uma lei que não consegue se impor aos interesses privados.
A estratégia de ocupar e resistir tem superado as ações das comunidades carentes e foi assumida por movimentos sociais na defesa do direito à cidade. Casos como o “Ocupe Estelita”, no Recife, (cujo grito de guerra é, precisamente, “resistir!, ocupar!”) ou o “Ocupe Cais Mauá”, em Porto Alegre, (ambos inspirados em casos internacionais, como o “Occupy Wall Street”) marcam uma nova consciência social que pretende virar o jogo do atual modelo de cidade em construção.
Perante a inércia extrativa dos processos de consolidação da cidade formal, a sociedade esclarecida propõe a ocupação, a resistência e o confronto de ideias como mecanismos de transformação da cidade excludente para cidade inclusiva, da cidade insegura para cidade segura, da cidade dos consumidores para cidade dos cidadãos, da cidade dos automóveis para cidade das pessoas, da cidade da esquizofrenia para cidade da convivência civilizada, da cidade burocrática para cidade espontânea, em definitivo, da cidade do lucro de poucos para cidade da vida de todos, onde o habitar seja essência da urbanidade.
Para isso, torna-se necessário assumir projetos de cidade baseados em planos diretores que substituam as leis baseadas em princípios extrativos por outras afirmadas em princípios criativos, onde a qualificação do espaço urbano, a valorização do público, a integração social e a subordinação dos interesses privados aos gerais orientem na direção da sustentabilidade física, social e ambiental, na convicção que o desenvolvimento de um país passa, em grande parte, pelo desenvolvimento urbano de suas cidades.
*Roberto Ghione é arquiteto.