Preservação do Patrimônio é tema de entrevista com a professora Giceli Portela
15 de junho de 2021 |
A partir de agora, o site e as redes sociais (Facebook e Instagram) do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Paraná (CAU/PR) têm um novo quadro! É o Arquitetura em Debate, um espaço para abordar temas da área, como o Patrimônio Histórico Cultural e Artístico, o Planejamento Urbano e Regional, o Meio Ambiente, a Arquitetura Paisagística e a de Interiores, entre outros.
O primeiro assunto é a preservação do patrimônio. Para isso, o CAU/PR conversou com a professora Giceli Portela. Arquiteta e urbanista graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), mestre e doutora pela Universidade de São Paulo (USP), com pos-doc na École de Chaillot (França), Giceli Portela é professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Reconhecida pelo trabalho de pesquisa sobre a obra do mestre João Batista Vilanova Artigas, ela também coordena o Núcleo Paraná do Docomomo, órgão da UNESCO que tem como objetivos a documentação e a preservação das criações do Movimento Moderno na Arquitetura, Urbanismo e manifestações afins.
No próximo dia 23 de junho, Artigas completaria 106 anos de nascimento. Qual a importância do mestre para a Arquitetura e Urbanismo?
A relevância de Vilanova Artigas ultrapassa fronteiras físicas e temporais, uma vez que sua extensa carreira possui obras muito atuais, mesmo passados mais de setenta anos da construção. Em paralelo observamos que a didática do mestre permanece. Para isto basta checar a produção arquitetônica de qualidade dos tempos atuais, que remete a todo tempo às lições do arquiteto e urbanista. A cada geração renovam-se os paradigmas do mestre, dispostos em novas matérias e situações, mas sempre carregando em si a dignidade e o papel que a Arquitetura ganhou por meio de Artigas.
No Paraná isso se expressa com muita evidência, tendo em vista a Arquitetura que se produziu desde a implantação do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 1962. Os professores que aqui chegaram para formar novos arquitetos e urbanistas, carregavam em suas bagagens muitos dos conceitos sempre atemporais do Artigas: a arte de intervir na natureza com sabedoria e respeito aos recursos naturais; a integração do espaço construído para o homem e para a cidade; a valorização do arquiteto e urbanista como profissional que chega para melhorar a vida das pessoas. Artigas vive em cada arquiteto e urbanista brasileiro.
A senhora ainda é proprietária e reside na Casa Bettega, que foi projetada pelo Artigas. Conte-nos as curiosidades da aventura de adquirir este imóvel a fim de preservá-lo.
Fui formada por uma geração de professores que atuavam e valorizavam o modernismo. Minha carreira como arquiteta e urbanista se voltou desde muito cedo à preservação do patrimônio histórico. Então, isso foi apenas uma junção de fatores que culminou comigo dentro de uma casa do Artigas. No ano de 2002, eu procurava um imóvel para o meu escritório de Arquitetura e me deparei com essa casa abandonada na Rua da Paz. Nem mesmo tinha certeza do seu autor, mas logo reconheci os valores da Arquitetura quando entrei. A ocupação do lote era perfeita, o sol adentrava em cada cantinho da casa, e havia uma composição de circulações geniais, entre outros fatores. Vi logo que se tratava de uma obra do mestre. Com dificuldades adquiri o imóvel e prossegui meus estudos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde fiz mestrado e doutorado. Estudei a obra do Artigas, sempre contando com a família dele (Rosa e Júlio) e com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o amigo mais próximo de Vilanova, que me relatava as peculiaridades da vida do mestre como “homem do sul”, como pessoa genial, das suas piadas e dos difíceis tempos da ditadura.
Conseguimos restaurar a casa que a partir de então passou a representar a obra do mestre em Curitiba, recebendo pesquisadores e arquitetos e urbanistas do mundo inteiro para visitações. A partir de 2015, quando passei a dedicar-me exclusivamente a carreira de docente na UTFPR, mudei-me para essa casa com minha família, onde posso usufruir de uma “morada do Artigas” em sua plenitude, habitando a obra de um gênio. Encontro-me com sua arte no cotidiano, sou muito feliz aqui.
Por falar em preservação, como a senhora avalia o projeto de Lei apresentado pelo deputado federal Gustavo Fruet (PDT-PR), que institui a Política Nacional do Patrimônio Cultural Tombado e cria o Fundo Nacional do Patrimônio Tombado (FNPT)? O objetivo seria incentivar e garantir condições financeiras e técnicas para a preservação de patrimônios já tombados.
Como profissional da área do patrimônio, sempre comemoro ações de políticas da preservação do nosso patrimônio construído. A Arquitetura brasileira, principalmente a moderna, é um dos legados que mais nos representa mundo afora. As cidades do Paraná clamam por conservação de seu patrimônio, em função disso é fundamental que gestores públicos se envolvam e abram caminhos e possibilidades de conservação. Conservar o patrimônio é valorizar a própria história, traz riqueza e bem-estar para as cidades. Há uma enorme coleção construída à luz do modernismo sofrendo com a degradação. O patrimônio moderno nos caracteriza e nos coloca num patamar de igualdade cultural com outros lugares do mundo. Muito trabalho deve ser empenhado, e muitos recursos também em prol da movimentação cultural. Assim garantiremos que todo um legado seja levado para o futuro, e que outras gerações possam usufruir e aprender com os nossos melhores feitos.
Vale lembrar que no Paraná há um conjunto de 37 obras de Vilanova Artigas e nem todas têm proteção do poder público.
Como professora da UTFPR a senhora também desempenha ações para a preservação do patrimônio das cidades?
É papel da universidade pública atender as demandas e ajudar a sociedade onde se encontra. Há 112 anos a UTFPR faz parte da melhoria da qualidade profissional do Paraná. Ouvimos uma demanda por parte dos estudantes e egressos que se voltam para a preservação do patrimônio construído, onde este grupo demonstrava o desejo de trabalhar com patrimônio e restauro da Arquitetura. Um grupo de pesquisas criado em 2017 vem se desenvolvendo e apoiando o jovem pesquisador, mas ainda não havia entre os mais de cem cursos de especialização, um de patrimônio e restauro.
Sabendo das poucas possibilidades de oferta de capacitação nesta área em território nacional, do escasso número de professores e pesquisadores nesta área em Curitiba, fomos pesquisar em muitas instituições do mundo um modelo de curso que se identificasse com o perfil da nossa cidade e com a UTFPR. E assim criamos o PARC – Patrimônio, Arquitetura, Cultura – Pós-graduação em Patrimônio Histórico e Restauro. Muitos convênios de intercâmbio foram realizados para que formássemos um projeto pedagógico extenso, a fim de atender essa demanda, contando com professores locais e alguns profissionais estrangeiros. A ideia é oferecer um curso de especialização nos moldes lato sensu, com aproximadamente 500 horas de aula, chancelado pela universidade e pelas instituições conveniadas.
Com muitas atividades práticas e, principalmente, tendo a cidade como laboratório, a ideia é confrontar os problemas de conservação como base para as soluções, evocando uma nova abordagem para o arquiteto e urbanista atual, a convivência e a valorização da Arquitetura antiga. Todos os detalhes do curso estão em www.parc.arquivoarquitetura.com
Para finalizar, a senhora quer nos contar uma curiosidade que vivenciou no velho continente, não é mesmo?
Na Europa, onde estive fazendo pós-doutorado em Patrimônio, o arquiteto que restaura é um dos profissionais mais respeitados do meio. Ele carrega a história da cidade em suas ações. Na França, especialmente, uma titulação diferenciada é dedicada ao arquiteto do patrimônio pelo Conselho dos Arquitetos: “A.P” (Architecte du Patrimoine) é reconhecido pelos colegas e pelo meio cultural como o profissional guardião dos tesouros das cidades. Uma gentileza para quem sabe aliar o exercício da Arquitetura com os feitos do passado, sem deixar apagar a memória dos grandes feitos técnicos e artísticos do seu país.
Então, o reconhecimento do arquiteto que trabalha com patrimônio na Europa é mais ou menos assim:
– Você é arquiteto? Alguém pergunta.
– Sim, sou AP!
– Uau! Alguém responde.