Os arquitetos e a ditadura
2 de abril de 2014 |
Artigo especial de Paulo Markun*
A ditadura brasileira (1964-1985) não tratou de modo particularmente cruel os arquitetos – concedeu-lhes a mesma mistura de perseguição ideológica e mediocridade que reservou a outras categorias profissionais.
Em Porto Alegre, um mês após o golpe, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul instituiu a Comissão Especial de Investigação Sumária (CEI): 16 membros, cada um escolhido pela Congregação das unidades universitárias, subordinados à Comissão Geral de Investigações, presidida pelo general Jorge Cezar Garrastazu Teixeira, que oficialmente era apenas um assessor militar da comissão da UFRGS. A congregação da Faculdade de Arquitetura negou-se a indicar um representante – o da faculdade de engenharia, ligado ao Ipês, um dos organismos de direita que batalharam pela queda do governo de Jango, acumulou a função.
Um ofício apócrifo convocava os suspeitos, que recebiam um dossiê sem autoria identificada, com várias denúncias. Nelson Souza, autor do projeto do aeroporto Salgado Filho, foi um dos intimados. Conseguiu dispensar a primeira acusação: a de ser assinante de um jornal da classe operária do Rio de Janeiro, mas foi acusado de pertencer a uma organização subversiva cujo nome seus acusadores sequer revelaram. Jamais recebeu qualquer comunicação oficial sobre o resultado da investigação, mas como outros 16 colegas da UFRGS, soube pelos jornais que fora afastado da universidade.
Já estava demitido, quando o general Garrastazu Teixeira o convocou para uma conversa e lhe perguntou se Nelson era marxista. O arquiteto disse que não podia responder, porque não conhecia suficientemente o pensamento filosófico de Marx.
Enquanto no Rio Grande do Sul a repressão agia às claras, em São Paulo, o reitor da USP, Gama e Silva, criou uma comissão secreta para investigar professores e alunos. Sua atuação foi noticiada pela “Folha de S. Paulo” em julho, ainda sem uma acusação clara – o texto falava em “indícios, infelizmente fortes” de que havia uma política do dedo duro em certos núcleos da universidade – e em outubro, o jornal “Correio da Manhã” publicou o fac-símile das duas últimas páginas do relatório final da comissão, que havia concluído “serem realmente impressionantes as infiltrações de ideias marxistas nos vários setores universitários, cumprindo sejam afastados daí os seus doutrinadores e os agentes dos processos subversivos”. A solução era suspender os direitos políticos de 52 pessoas, dos quais 44 professores, além de alunos e funcionários. A lista encabeçada pelo físico Mário Schenberg, incluía os nomes de Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, José Serra, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Isaías Raw, entre outros. Três eram da FAU: os professores João Batista Villanova Artigas e Abelardo Riedy de Souza e o estudante Sylvio Barros Sawaya.
O relatório não foi encaminhado ao Conselho Universitário, mas aos órgãos de segurança. Foram instaurados inquéritos policiais-militares e os acusados foram ouvidos. Florestan Fernandes chegou a ser preso por ter divulgado a carta de protesto que entregara ao coronel responsável pelo IPM. Artigas foi preso dentro do prédio da FAU, durante o período de aulas e diante dos alunos. Seis professores da Medicina foram demitidos, mas os outros continuaram na universidade e foram absolvidos nos processos. Resultados que devem ser creditados à soma da ação corajosa do professor Paulo Duarte com o espaço que a imprensa ainda com liberdade de atuação dedicou ao assunto.
Mas em dezembro de 1968, o AI-5 completou o serviço. Gama e Silva deixara a reitoria para assumir o Ministério da Justiça do governo Costa e Silva. Desde junho de 1968, já batalhava pelo endurecimento do regime. O discurso do deputado Márcio Moreira Alves, propondo que as mocinhas não dançassem com os cadetes nas festas – e a atitude do Congresso negando licença para que ele fosse processado por isso – formaram o pretexto que faltava para o golpe dentro do golpe.
Houve novas demissões, ainda mais sumárias. Treze professores da UFRGS foram aposentados ou demitidos. Outros 20, que assinaram um documento pedindo a volta dos colegas foram chamados às falas e os seis que mantiveram a posição também perderam seus empregos.
Em abril de 1969, um decreto do presidente Costa e Silva aposentou 42 pessoas que ocupavam cargos nos órgãos da administração pública federal (assim está escrito no texto do decreto), com base no AI-5. Três deles eram de uma instituição estadual, a USP: Florestan Fernandes, Vilanova Artigas, e Jayme Tiomno. O vice-reitor em exercício, Hélio Lourenço de Oliveira, protestou e a resposta foi novo decreto especialmente dedicado à USP e que aposentou ou demitiu o próprio Hélio Lourenço e outros 23 professores – incluindo os arquitetos Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean.
O decreto também continha alguns erros: Caio Prado Júnior não tinha cargo na universidade, era apenas livre-docente, o que lhe possibilitava concorrer a uma cátedra. Outros tinham sido demitidos em 1964 ou não possuíam vínculo com a USP.
Desnecessário lembrar que Oscar Niemeyer, como arquiteto e cidadão, manteve destacada presença à frente de manifestos e instituições que se opuseram à ditadura. Outras importantes referências foram Lelé, Edgar Graeff, Glauco Campello, Mayumi e Sérgio de Souza Lima, Carlos Fayet, Demétrio Ribeiro e Elvin Dubugras. Há muitos nomes e casos mais a serem citados, mas esse texto não tem a pretensão de esgotar o histórico dos conflitos da ditadura com os arquitetos. Outros, com maior competência, terão condições de ir além. Fica o incentivo.
A ditadura nunca tratou bem a inteligência. Não seria ditadura se assim agisse. E aos que porventura desconhecem a estatura intelectual de muitos professores cassados e acham que as coisas eram melhores naqueles tempos, recomendo a leitura do texto da aula inaugural que Artigas proferiu no dia primeiro de março de 1967, sobre o desenho. Eu não estava lá, mas tive a oportunidade de acompanhar a volta do velho mestre à USP, infelizmente como professor auxiliar, em 1980.
Não há como medir o prejuízo que o afastamento desses arquitetos da universidade causou. Só posso avaliar o lucro individual que isso me trouxe, já que no período em que ficou compulsoriamente afastado da universidade, Artigas serviu de inspiração para dezenas de jovens que frequentavam a casa dele e da artista plástica Virginia, no Brooklin. Tive a sorte de estar entre eles.
*Paulo Markun, jornalista e produtor independente, lança nas próximas semanas “Brado Retumbante”, dois volumes sobre a luta pela democracia, do golpe às Diretas-Já.